No âmbito do Direito Previdenciário e Assistencial, a atuação estratégica é fundamental para garantir o acesso aos direitos sociais. Quando tratamos do Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS), uma das etapas mais críticas é a análise da composição do grupo familiar e a consequente aferição da renda per capita. Nesse contexto, é imprescindível compreender o funcionamento e o posicionamento dos órgãos envolvidos, especificamente o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS).
O INSS, na qualidade de autarquia federal, é o órgão responsável pela análise inicial dos requerimentos. Contudo, suas decisões não são definitivas na esfera administrativa. O órgão incumbido de revisar tais decisões é o CRPS, um colegiado ligado à estrutura federal, composto por representantes do governo, dos trabalhadores e das empresas. Esta composição plural tende a garantir decisões técnicas e, muitas vezes, mais aprofundadas sobre a legislação vigente.
A Divergência de Entendimentos: Via Administrativa vs. Via Judicial
Um ponto crucial para o sucesso no requerimento do BPC reside na escolha da via de discussão: administrativa ou judicial. Observa-se que, em questões específicas como a composição do grupo familiar, o CRPS tem consolidado um entendimento que pode ser mais benéfico ao segurado do que aquele praticado em muitos Juizados Especiais Federais (JEFs).
Enquanto o Conselho de Recursos tende a seguir uma interpretação mais restritiva — e legalista — sobre quem compõe a família para fins de cálculo de renda (o que é positivo para o requerente, pois evita a soma indevida de rendas de terceiros), o Poder Judiciário, por vezes, adota interpretações que ampliam o rol de membros familiares. Essa ampliação judicial pode resultar na inclusão de pessoas que não deveriam compor o cálculo, elevando a renda per capita e indeferindo o benefício.
Estratégia Processual:
"Se o obstáculo para a concessão do benefício for a inclusão indevida de membros no grupo familiar durante a aferição da renda, recorrer à via administrativa (CRPS) apresenta-se, frequentemente, como uma alternativa mais eficaz do que o ingresso imediato na via judicial."
A Morosidade da Jurisprudência e a Eficácia Administrativa
A advocacia previdenciária moderna exige o conhecimento não apenas da lei fria, mas de como os tribunais e conselhos interpretam essas normas. A jurisprudência nos tribunais superiores (STF e STJ) é essencial, porém, a pacificação de entendimentos pode levar décadas. Temas complexos muitas vezes aguardam longos períodos para terem teses fixadas em sede de repercussão geral ou recursos repetitivos.
Em contrapartida, o CRPS possui uma dinâmica própria e enunciados que, muitas vezes, antecipam direitos ou mantêm posições mais favoráveis ao cidadão em tempo hábil. Portanto, ignorar a fase recursal administrativa pode significar não apenas a perda de uma chance de êxito mais célere, mas também o risco de submeter o cliente a um entendimento judicial menos favorável naquele momento histórico.
Dessa forma, dominar o entendimento administrativo sobre a composição familiar é o primeiro passo para uma defesa técnica robusta, evitando que o requerente seja prejudicado por cálculos de renda que não refletem a realidade legal de sua miserabilidade ou vulnerabilidade social.
Princípios da Assistência Social e a Vedação à Prova Vexatória
A concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) não é apenas um ato administrativo burocrático; ela é regida por princípios fundamentais estabelecidos na Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/93). Compreender esses pilares é essencial para garantir que o processo de avaliação da vulnerabilidade social respeite a dignidade do requerente.
Embora o critério objetivo de renda (per capita inferior a 1/4 do salário mínimo) seja frequentemente o ponto central das discussões — inclusive com teses importantes nos tribunais, como o IRDR nº 12 do TRF-4, que trata da presunção absoluta de miserabilidade nesse patamar —, a análise deve sempre observar os princípios norteadores previstos na legislação.
Os Princípios do Artigo 4º da LOAS
O artigo 4º da Lei nº 8.742/93 estabelece as diretrizes que regem a assistência social no Brasil. Dentre elas, destaca-se a proteção à dignidade do cidadão e a proibição de práticas que exponham o requerente a situações humilhantes durante a comprovação de sua necessidade.
Lei nº 8.742/93, Art. 4º:
"A assistência social rege-se pelos seguintes princípios:
(...)
III - respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;"
A Proibição da Comprovação Vexatória
A parte final do inciso III merece destaque especial. A lei veda expressamente "qualquer comprovação vexatória de necessidade". Isso significa que o Estado não pode exigir que o cidadão se humilhe ou exponha sua miséria de forma degradante apenas para acessar um direito que lhe é garantido constitucionalmente.
Essa diretriz é reforçada por regulamentações infralegais, como a Portaria Conjunta nº 3/2018 (MDS/INSS). O normativo proíbe, por exemplo, a exigência de "declaração de pobreza" como documento obrigatório ou qualquer outra forma de comprovação de renda que submeta o requerente a constrangimento.
Na prática administrativa, isso assegura que a aferição da hipossuficiência deve ser pautada em critérios técnicos e documentais objetivos (como o Cadastro Único - CadÚnico), e não em exigências subjetivas que firam a moral do indivíduo. Embora no âmbito judicial a produção de provas sobre a condição socioeconômica seja comum e rigorosa, na esfera administrativa do INSS, deve-se observar estritamente essa vedação, protegendo a integridade moral do idoso ou da pessoa com deficiência.
Exclusões do Cálculo da Renda: Contribuições Facultativas e Benefícios Assistenciais
A correta aferição da renda per capita passa não apenas pelo que deve ser somado, mas principalmente pelo que deve ser excluído do cálculo. A Portaria Conjunta nº 3, de 21 de setembro de 2018 (MDS/INSS), traz disposições essenciais que impedem que certas verbas ou contribuições prejudiquem o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC).
O Salário de Contribuição e o Segurado Facultativo
Um ponto de dúvida frequente é se o pagamento de contribuições ao INSS por parte de membros do grupo familiar (ou do próprio requerente) entra no cálculo da renda bruta. A legislação é clara ao dispor que o salário de contribuição não integra a renda mensal familiar para fins de BPC quando o recolhimento é feito na modalidade de segurado facultativo.
Isso abre uma oportunidade de planejamento previdenciário valiosa. O beneficiário do BPC, ou membros de sua família que não exerçam atividade remunerada, podem contribuir para o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) como facultativos sem medo de perder o benefício assistencial.
Estratégia Previdenciária:
Embora exista a alíquota de 5% para facultativo de baixa renda, recomenda-se cautela. A utilização dessa alíquota exige validação da condição de baixa renda, o que pode gerar conflitos administrativos. A instrução estratégica é contribuir, se possível, pela alíquota de 11% (Plano Simplificado).
Ao contribuir, o cidadão mantém a qualidade de segurado e caminha em direção a uma aposentadoria futura. Diferente do BPC, a aposentadoria garante 13º salário, deixa pensão por morte aos dependentes e é vitalícia, oferecendo uma proteção social muito mais robusta.
Verbas que Não Compõem a Renda Mensal (Art. 8º da Portaria Conjunta nº 3/2018)
Além das contribuições previdenciárias, a Portaria define um rol de rendimentos que não devem ser computados pelo INSS na hora de calcular a renda da família. Se o INSS incluir indevidamente qualquer um desses valores, cabe recurso administrativo para correção.
De acordo com o artigo 8º da referida Portaria, não compõem a renda familiar:
- Programas de Transferência de Renda: Valores oriundos de programas sociais (como o Bolsa Família) não entram no cálculo.
- Benefícios Assistenciais Temporários: Auxílios de natureza eventual e temporária.
- Estágio Supervisionado: Valores recebidos a título de bolsa de estágio.
- Pensões Indenizatórias: Pensões de natureza indenizatória e benefícios de assistência médica.
- Renda Eventual ou Sazonal: Ganhos que não são fixos ou contínuos.
- Contrato de Aprendizagem: Rendimentos provenientes de contrato de aprendizagem (Jovem Aprendiz) por um período de até dois anos.
É fundamental estar atento a esses detalhes. Muitas vezes, um benefício é indeferido porque o sistema computou a bolsa de estágio de um filho ou um benefício eventual, elevando artificialmente a renda per capita acima do limite legal de 1/4 do salário mínimo.
Definição Legal do Grupo Familiar: Quem Compõe e Quem Fica de Fora
Um dos erros mais comuns na análise de direito ao BPC/LOAS ocorre na delimitação de quem, afinal, faz parte do "grupo familiar". Essa definição é crucial, pois é a soma da renda dessas pessoas — e apenas delas — que determinará a renda per capita. Se o INSS ou o Judiciário incluir indevidamente um indivíduo com renda na família, o benefício pode ser negado injustamente.
A base legal para essa definição encontra-se no artigo 20, § 1º, da Lei nº 8.742/93 (LOAS). O conceito é taxativo (rol fechado) e exige a coabitação.
A Lista Taxativa da Lei (Quem Entra)
Para fins de BPC, a família é composta exclusivamente pelos seguintes membros, desde que vivam sob o mesmo teto do requerente:
- O próprio requerente;
- O cônjuge ou companheiro (incluindo uniões homoafetivas);
- Os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto;
- Os irmãos solteiros;
- Os filhos e enteados solteiros;
- Os menores tutelados.
Atenção ao CadÚnico: O Cadastro Único (CadÚnico) registra todas as pessoas que residem no domicílio. No entanto, para a concessão do BPC, o INSS deve filtrar esses dados e considerar apenas quem se enquadra no rol legal acima. Pessoas que moram na casa, mas não estão na lista (como tios, avós ou primos), não compõem o grupo familiar para fins de cálculo de renda, mesmo que vivam sob o mesmo teto.
As Exclusões Específicas (Quem Sai)
A Portaria Conjunta nº 3/2018 esclarece situações que geram muitas dúvidas e que, administrativamente, favorecem o segurado. O artigo 8º determina explicitamente quem não compõe o grupo familiar, mesmo coabitando:
- Filhos, Enteados e Irmãos não Solteiros: Se o filho, enteado ou irmão que mora com o requerente for divorciado, viúvo ou separado de fato, ele não entra no grupo familiar. A lei fala apenas em "solteiros". Portanto, a renda de uma filha divorciada que voltou a morar com a mãe idosa não deve ser computada no cálculo do BPC da mãe.
- Tutor ou Curador: A figura do tutor ou curador, por si só, não integra o grupo familiar, a menos que ele já seja um dos parentes elencados na lei (como um pai ou irmão solteiro).
- Coabitação em Instituições: O fato de dividir o mesmo teto em instituições de longa permanência (asilos, abrigos) ou hospitais não configura grupo familiar entre os residentes.
O Perigo da Interpretação Judicial Ampliativa
Aqui reside uma grande vantagem da via administrativa (CRPS) sobre a judicial (Juizados Especiais) em muitos casos.
Enquanto a via administrativa tende a seguir a letra da lei (excluindo filhos casados/divorciados e parentes não listados), o Judiciário frequentemente adota uma interpretação econômica ampliativa. Não é raro ver sentenças nos Juizados Especiais Federais (JEFs) considerando que filhos adultos, mesmo casados ou não residentes, deveriam "ajudar" os pais, negando o benefício com base em uma solidariedade familiar que, embora moral e espiritualmente desejável, retira a responsabilidade objetiva do Estado prevista na LOAS.
Portanto, se o requerente mora com familiares que possuem renda, mas que a lei exclui do cálculo (ex: um filho divorciado ou um tio), a via administrativa oferece uma proteção muito mais segura, pois o INSS é obrigado a seguir o rol estrito da lei e da portaria.
O Cálculo da Renda e a Dedução de Benefícios Previdenciários ou Assistenciais (Lei nº 13.982/2020)
A evolução legislativa e jurisprudencial trouxe avanços significativos para o cálculo da renda per capita no Benefício de Prestação Continuada. Historicamente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicava, por analogia (Tema 640), o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso para deduzir benefícios assistenciais do cálculo da renda. Contudo, com o advento da Lei nº 13.982/2020, essa regra foi positivada e ampliada dentro da própria Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
A Regra da Dedução de Renda (Art. 20, § 14 da LOAS)
Atualmente, o artigo 20, § 14, da Lei nº 8.742/93 determina expressamente que certos benefícios já recebidos por membros da família não devem ser contabilizados na renda familiar para a concessão de um novo BPC.
Para que o valor seja excluído do cálculo, é necessário preencher requisitos cumulativos:
- O Beneficiário Existente: O membro da família que já recebe o benefício deve ser idoso (acima de 65 anos) ou pessoa com deficiência.
- O Tipo de Benefício: Pode ser um BPC/LOAS ou um benefício previdenciário (como aposentadoria ou pensão).
- O Valor do Benefício: O valor recebido deve ser de até 1 (um) salário-mínimo.
Lei nº 8.742/93, Art. 20, § 14:
"O benefício de prestação continuada ou o benefício previdenciário no valor de até 1 (um) salário-mínimo concedido a idoso acima de 65 (sessenta e cinco) anos ou pessoa com deficiência não será computado, para fins de concessão do benefício de prestação continuada a outro idoso ou pessoa com deficiência da mesma família, no cálculo da renda a que se refere o § 3º deste artigo."
Aplicação Prática e Cumulatividade
Essa alteração legislativa resolveu antigas controvérsias e permitiu, de forma clara, a cumulação de benefícios na mesma casa.
Imagine um casal de idosos onde o marido já recebe uma aposentadoria de um salário-mínimo. Ao calcular a renda para o requerimento do BPC da esposa (também idosa ou com deficiência), a aposentadoria do marido é excluída do cálculo. Isso significa que, para fins legais, a renda considerada para a esposa é zero, garantindo a ela o direito ao benefício, desde que atendidos os demais critérios.
O § 15 do mesmo artigo reforça essa possibilidade:
Lei nº 8.742/93, Art. 20, § 15:
"O benefício de prestação continuada será devido a mais de um membro da mesma família enquanto atendidos os requisitos exigidos nesta Lei."
A Realidade Social e a Necessidade de Proteção
A permissão legal para que mais de um membro da mesma família receba o benefício, ou que se acumule o BPC com uma aposentadoria mínima, reflete o reconhecimento da vulnerabilidade social extrema existente no Brasil.
Embora possa haver questionamentos sobre a necessidade de múltiplos benefícios em um mesmo lar, a realidade fática de famílias em áreas de risco social, periferias e regiões com baixo índice de desenvolvimento humano demonstra que, muitas vezes, essa renda é a única barreira contra a miséria absoluta. Trabalhadores de baixa renda, que contribuíram pouco ou nada para a previdência, ou pessoas com deficiência que nunca puderam ingressar no mercado de trabalho, encontram nesses dispositivos legais a garantia mínima de dignidade.
Portanto, ao analisar o direito ao BPC, o operador do direito deve sempre verificar se há rendas na família passíveis de exclusão com base no § 14 do artigo 20, garantindo a aplicação justa da lei e a proteção social daqueles que dela necessitam.
Conclusão: A Técnica Jurídica a Serviço da Dignidade Social
A análise dos requisitos para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS) revela que a atuação na esfera previdenciária vai muito além do preenchimento de formulários. Trata-se de um exercício profundo de interpretação legal e, sobretudo, de compreensão da realidade social brasileira.
Como vimos, a definição de grupo familiar e os critérios de aferição da renda per capita possuem nuances específicas na legislação e nas normativas administrativas (como a Portaria Conjunta nº 3/2018) que, se bem aplicadas, podem garantir o deferimento do benefício sem a necessidade de longas batalhas judiciais. A estratégia de privilegiar a via administrativa — especialmente através do Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS) — mostra-se vital quando o obstáculo reside na composição familiar, visto que o entendimento administrativo é frequentemente mais técnico e restritivo quanto a quem deve compor o cálculo, protegendo o segurado de inclusões indevidas.
Além disso, a possibilidade de dedução de benefícios de valor mínimo já recebidos por idosos ou pessoas com deficiência na mesma casa (Lei nº 13.982/2020) representa um avanço civilizatório, impedindo que a proteção social de um membro da família anule o direito do outro.
O operador do direito deve despir-se de preconceitos e olhar para a vulnerabilidade com a seriedade que a Constituição exige. O BPC não é um favor, mas um direito fundamental de quem, por barreiras sociais, físicas ou etárias, não consegue prover o próprio sustento. Conhecer as exceções, as deduções legais e a correta formação do grupo familiar é a chave para transformar a letra fria da lei em dignidade e sustento para as famílias que mais precisam.