A concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), atravessa invariavelmente a análise da condição socioeconômica do requerente. O legislador estabeleceu um critério objetivo para definir quem se enquadra na situação de vulnerabilidade capaz de ensejar o recebimento do auxílio: a renda per capita familiar.
Atualmente, o parâmetro central para essa aferição encontra-se disposto no Artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93. A regra estabelece um teto de rendimento para que a família seja considerada incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou do idoso.
"§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo." (Redação dada pela Lei nº 13.982, de 2020, com vigência mantida pela Medida Provisória nº 1.023/2020)
A Evolução Legislativa e a Manutenção do Critério Restritivo
A definição desse quantum financeiro gerou intensas controvérsias legislativas e jurídicas ao longo dos últimos anos. Houve momentos de incerteza normativa, especialmente durante o período de 2020 e 2021, onde se discutiu a elevação desse patamar para meio salário mínimo.
A Lei nº 13.982/2020 chegou a prever, em seu inciso II (que foi objeto de veto), a possibilidade de o critério de renda ser elevado para metade do salário mínimo. No entanto, o veto presidencial foi mantido pelo Congresso Nacional. Para evitar um vácuo legislativo e pacificar a questão, foi editada a Medida Provisória nº 1.023/2020, que reafirmou a redação do critério objetivo: a renda deve ser inferior a um quarto do salário mínimo.
É fundamental notar a especificidade da redação atual: o texto legal utiliza o termo "inferior". Isso torna o critério ainda mais restritivo do que redações anteriores ou interpretações que consideravam rendas "iguais ou inferiores". Portanto, sob a ótica estritamente legal e administrativa do INSS, a barreira de entrada é aritmeticamente rígida.
Presunção de Miserabilidade
Quando o requerente comprova que sua renda familiar per capita é inferior a 1/4 do salário mínimo, opera-se o que a doutrina e a jurisprudência chamam de presunção de miserabilidade.
Isso significa que, ao atingir esse requisito objetivo, o Estado reconhece automaticamente a situação de vulnerabilidade econômica extrema, dispensando, em tese, a necessidade de provar a pobreza por outros meios complexos naquela primeira análise de renda. No entanto, é vital compreender que este é apenas o primeiro passo da análise. Embora a renda inferior a 1/4 gere essa presunção a favor do cidadão, a análise da assistência social é multifatorial.
O Cadastro Único (CadÚnico) é a ferramenta primária para essa aferição, mas ele não analisa apenas o número frio da renda. O contexto de vida, as condições de habitabilidade e a estrutura familiar também são observados. Contudo, para fins de enquadramento na regra matriz do benefício, o patamar de 1/4 do salário mínimo permanece como o divisor de águas na legislação vigente.
Este critério, apesar de objetivo, não encerra a discussão sobre a necessidade do benefício, servindo como ponto de partida para a avaliação da capacidade de manutenção do indivíduo pelo seu núcleo familiar.
Deduções Permitidas no Cálculo da Renda Familiar: Saúde e Medicamentos
Embora o critério de 1/4 do salário mínimo pareça rígido à primeira vista, o cálculo da renda per capita para fins de BPC/LOAS não deve ser interpretado de maneira absoluta e bruta. Existe uma flexibilização administrativa e judicial fundamental decorrente de Ação Civil Pública (ACP), que obriga o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a considerar descontos na renda baseados em gastos essenciais de saúde.
Essa previsão visa aproximar o cálculo da realidade fática da família, reconhecendo que uma renda aparente pode estar totalmente comprometida com a sobrevivência biológica do requerente.
O Que Pode Ser Deduzido?
Para a aferição da renda real disponível, podem ser abatidos do montante total os valores gastos mensalmente com:
- Medicamentos;
- Alimentação especial;
- Fraldas descartáveis;
- Consultas na área da saúde.
Essa dedução tem o potencial de reduzir drasticamente a renda per capita oficial, permitindo que famílias que recebem valores ligeiramente superiores ao teto legal se enquadrem no critério de miserabilidade.
O Requisito da Negativa do SUS
Contudo, a legislação e as normativas administrativas impõem uma condição restritiva para a aceitação desses gastos: a comprovação de que esses itens não são fornecidos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Não basta apresentar notas fiscais de farmácia. O requerente deve, em tese, demonstrar que o Estado falhou em prover aquele insumo ou que o item não consta na lista de distribuição gratuita.
Aqui reside um grande obstáculo prático: a dificuldade documental. Muitas vezes, é complexo para o cidadão obter uma certidão ou declaração formal do posto de saúde ou da secretaria municipal atestando a negativa do fornecimento ou a falta do medicamento em estoque. O SUS, em seus diversos níveis (municipal e estadual), nem sempre fornece documentação hábil para provar essa omissão.
Estratégia Processual Administrativa
Diante dessa burocracia, a instrução do requerimento exige cautela. Se a família, de fato, recebe todos os insumos do governo (medicamentos, fraldas, etc.) e não tem gastos extras, é recomendável declarar expressamente no pedido que não há despesas com tais itens. Isso evita a geração de "exigências" desnecessárias por parte do INSS, que poderiam travar o andamento do processo solicitando provas de gastos que não existem ou que são custeados pelo Estado.
Por outro lado, se a família arca com esses custos vitais, a apresentação de receituários médicos, negativas do SUS e comprovantes de pagamento torna-se indispensável para tentar abater esses valores e alcançar o critério de renda exigido.
Contexto Legislativo: Alterações Recentes e a Medida Provisória 1.023/2020
Para compreender a aplicação atual do critério de renda, é necessário revisitar o cenário de instabilidade legislativa ocorrido entre 2020 e 2021. O ordenamento jurídico brasileiro passou por diversas alterações que geraram dúvidas tanto para os operadores do direito quanto para os segurados.
Historicamente, a Lei nº 13.981/2020 tentou alterar o parâmetro de renda per capita, elevando-o para metade do salário mínimo. Essa mudança representaria uma ampliação significativa do acesso ao BPC. No entanto, a aplicação dessa lei enfrentou barreiras imediatas, incluindo questionamentos junto ao Tribunal de Contas e decisões liminares que suspenderam seus efeitos, criando um cenário de insegurança jurídica.
O Impacto da Pandemia e a Lei 13.982/2020
Concomitantemente às discussões sobre o critério de renda, o advento da pandemia de COVID-19 exigiu respostas rápidas do Congresso Nacional. Nesse contexto, foi editada a Lei nº 13.982/2020.
Esta legislação trouxe alterações importantes ao Artigo 20 da Lei 8.742/93 (LOAS), incluindo parágrafos que, à época, foram benéficos para a apuração da renda do BPC, excluindo certos rendimentos do cálculo (como veremos em tópicos futuros).
Além disso, durante o estado de calamidade pública, a legislação permitiu medidas excepcionais e temporárias que já não estão mais vigentes, tais como:
- A concessão de antecipação de um salário mínimo com base apenas em atestado médico, sem a necessidade imediata de perícia presencial;
- O pagamento do Auxílio Emergencial.
O Retorno ao Critério de 1/4 via MP 1.023/2020
Apesar das tentativas de ampliar o teto de renda para meio salário mínimo, o dispositivo que previa essa alteração na Lei 13.982/2020 foi vetado pelo Poder Executivo. Como o Congresso Nacional não derrubou o veto, criou-se uma lacuna normativa sobre qual critério deveria ser aplicado.
Para sanar essa questão e evitar um vácuo legal, foi editada a Medida Provisória nº 1.023/2020.
"Art. 20, § 3º (...) renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo." (Redação dada pela Medida Provisória nº 1.023, de 2020)
Esta Medida Provisória foi o instrumento legal responsável por consolidar, no período subsequente, o retorno ao critério restritivo de renda "inferior a 1/4 do salário mínimo", encerrando a expectativa legislativa de aumento automático do teto de renda para 50% do salário mínimo naquele momento histórico.
A Vulnerabilidade Social Além da Aritmética: Posicionamento do STF e STJ
A rigidez matemática do critério de 1/4 do salário mínimo, se aplicada de forma isolada, muitas vezes falha em retratar a verdadeira face da pobreza no Brasil. Reconhecendo essa insuficiência, tanto o legislador quanto as Cortes Superiores evoluíram o entendimento para permitir uma análise mais humanizada e fática da condição do requerente.
A Lei nº 8.742/93, em seu artigo 20, § 11, positivou o entendimento de que a renda não é o único termômetro da miséria:
"§ 11. Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento." (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
Isso significa que a análise socioeconômica deve ser global, observando o entorno, as condições de habitação e o custo de vida específico daquele grupo familiar.
O Entendimento do Supremo Tribunal Federal (Tema 27)
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Tema 27 da Repercussão Geral, firmou uma tese histórica sobre o assunto. A Corte declarou a inconstitucionalidade do § 3º do artigo 20 da LOAS, mas sem pronunciar a sua nulidade imediata.
Na prática, o STF decidiu que o critério de renda inferior a 1/4 do salário mínimo é um parâmetro, mas não pode ser um obstáculo intransponível. O critério é considerado defasado para aferir a miserabilidade em todas as situações. Assim, permitiu-se ao juiz, no caso concreto, afastar esse limite aritmético para reconhecer a vulnerabilidade com base em outros elementos de prova.
A Posição do Superior Tribunal de Justiça (Tema 185)
Alinhado a esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou tese em sede de Recursos Repetitivos (Tema 185), estabelecendo uma distinção crucial sobre como a renda deve ser interpretada:
- Renda inferior a 1/4 do salário mínimo: Gera presunção absoluta de miserabilidade. Se a renda for baixa nesse nível, a vulnerabilidade é presumida, não cabendo prova em contrário.
- Renda superior a 1/4 do salário mínimo: Não gera indeferimento automático. A limitação legal não é a única forma de comprovação. Nesses casos, a vulnerabilidade pode e deve ser comprovada por outros meios (laudos sociais, despesas excessivas, condições de moradia).
O Distanciamento da Realidade e a "Análise do Azulejo"
A aplicação desses entendimentos judiciais enfrenta, contudo, o desafio da subjetividade do julgador. Muitas vezes, existe um distanciamento entre a realidade do magistrado e a do jurisdicionado.
Não são raros os casos em que o benefício é negado judicialmente com base em fotos da residência que mostram um acabamento simples, como um azulejo na parede ou um eletrodoméstico, interpretados equivocadamente como sinais de capacidade financeira. Tais elementos, por vezes frutos de doações ou conquistas passadas, não necessariamente refletem a capacidade atual de manutenção da família.
Vulnerabilidade Social x Complemento de Renda
Por fim, é essencial distinguir o propósito do BPC. O benefício não serve como um "complemento de renda" para famílias que ganham pouco (ex: um salário mínimo e meio), mas conseguem sobreviver.
O conceito chave é vulnerabilidade e, para parte da doutrina, miserabilidade. O BPC destina-se a quem não possui o mínimo existencial, àqueles cujas despesas básicas (aluguel, água, luz, alimentação) superam a capacidade de geração de renda, colocando a dignidade e a sobrevivência em risco. Se a renda supera o critério legal, mas é consumida por despesas essenciais inevitáveis, a vulnerabilidade pode estar caracterizada.
Composição do Grupo Familiar e Definição de Renda Bruta
Para a correta aplicação do critério de renda, é indispensável compreender como o ordenamento jurídico define o conceito de "renda mensal bruta familiar" e a própria aritmética do cálculo per capita. O Decreto nº 6.214/2007, que regulamenta o BPC, traz as diretrizes exatas para essa operação.
A lógica do cálculo é, em tese, simples: soma-se a renda bruta de todos os integrantes do grupo familiar que vivem sob o mesmo teto e divide-se esse montante pelo número de pessoas. Se o resultado for inferior a 1/4 do salário mínimo, o critério objetivo está preenchido.
O Que Compõe a Renda Mensal Bruta?
O inciso VI do artigo 4º do referido Decreto é taxativo ao listar as fontes de rendimento que devem entrar na somatória. É crucial que o requerente e seu representante legal estejam atentos a esta lista para evitar declarações equivocadas ou surpresas na análise do INSS.
Compõem a renda familiar a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família, provenientes de:
"VI - (...) salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, seguro-desemprego, comissões, pro-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 19." (Redação dada pelo Decreto nº 7.617/2011)
Note que a abrangência é vasta, incluindo até mesmo rendimentos do mercado informal ("bicos") e pensões alimentícias.
A Importância da Análise do Processo Administrativo
Um erro comum na prática previdenciária ocorre quando o INSS indefere o benefício alegando superação da renda, mas o faz somando valores que legalmente deveriam ser excluídos (o que será detalhado em momento oportuno, mas vale o alerta sobre a exclusão de certos benefícios previdenciários de valor mínimo recebidos por idosos ou deficientes do mesmo grupo).
Por isso, diante de um indeferimento, a conduta técnica recomendada é solicitar a cópia integral do processo administrativo.
Apenas com o acesso à "memória de cálculo" feita pelo servidor do INSS é possível auditar a decisão. É necessário verificar item a item o que foi considerado como renda:
- O INSS somou um benefício que deveria ser excluído?
- Foi computada a renda de alguém que não faz parte do grupo familiar legal (ex: um filho casado que mora no mesmo terreno, mas em casa separada)?
- Foi considerado o valor bruto sem as deduções legais?
Essa auditoria detalhada é, muitas vezes, a chave para reverter a decisão administrativa, seja na via recursal ou judicial, demonstrando que a realidade econômica da família se enquadra nos requisitos da lei.
A Inaplicabilidade Prática do Artigo 20-A na Análise de Miserabilidade
Ao analisar a legislação atualizada da LOAS, é comum deparar-se com o Artigo 20-A, inserido no contexto das medidas de enfrentamento à pandemia de COVID-19. Uma leitura desatenta deste dispositivo pode levar à falsa impressão de que o critério de renda foi ampliado para meio salário mínimo de forma geral e irrestrita.
No entanto, a prática jurídica e administrativa demonstra que este artigo se tornou, em grande parte, "letra morta" no ordenamento jurídico, possuindo baixíssima ou nula aplicabilidade prática para a concessão atual de benefícios.
O Contexto de Calamidade Pública
O caput do artigo vincula sua aplicação diretamente ao estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
"Art. 20-A. Em razão do estado de calamidade pública (...) e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19), o critério de aferição da renda familiar mensal per capita (...) poderá ser ampliado para até 1/2 (meio) salário mínimo."
A redação utiliza o verbo "poderá", estabelecendo uma faculdade e não uma obrigação imediata. Além disso, essa possibilidade de ampliação da renda ficou condicionada a uma série de fatores complexos definidos em regulamento, tais como:
- O grau da deficiência;
- A dependência de terceiros para o desempenho de atividades básicas da vida diária;
- O comprometimento do orçamento do núcleo familiar com gastos médicos não supridos pelo SUS.
A Complexidade e a Falta de Eficácia
Apesar de extenso e detalhado, o artigo criou um mecanismo legal de difícil implementação. A ausência de regulamentação clara e ágil sobre como aferir esses "graus de dependência" ou "circunstâncias pessoais" no fluxo administrativo massificado do INSS tornou o dispositivo inócuo.
Na prática, não se observou a aplicação automática desse teto de 1/2 salário mínimo. O dispositivo acabou servindo mais como uma intenção legislativa durante a crise sanitária do que como uma regra perene de direito assistencial.
Portanto, para o operador do direito e para o cidadão, fundamentar um pedido de BPC/LOAS baseando-se exclusivamente na expectativa do Artigo 20-A é uma estratégia arriscada e pouco recomendada.
Conclusão: O Foco no Caso Concreto
Em vez de depender de dispositivos de eficácia duvidosa como o Artigo 20-A, a defesa do direito ao benefício deve se pautar na análise do caso concreto.
Se a renda per capita supera 1/4 do salário mínimo, o caminho mais seguro não é buscar a regra do "meio salário", mas sim demonstrar a vulnerabilidade social através das deduções de gastos de saúde permitidas pela Ação Civil Pública e pela comprovação fática da miserabilidade, conforme autorizado pelos precedentes vinculantes do STF e do STJ. É a realidade da família — suas carências, o ambiente em que vive e a insuficiência dos recursos para a manutenção digna — que deve prevalecer sobre critérios aritméticos frios ou legislações sem aplicação prática.