Caso Hipotético: Alberto possuía um único imóvel onde residia e faleceu, deixando dois filhos, Pedro e Tiago, como herdeiros. Antes de morrer, Alberto havia contraído uma dívida com Carlos. O credor ingressou com uma ação pedindo o arresto do imóvel para garantir o pagamento da dívida. O pedido foi aceito, mas os herdeiros recorreram, argumentando que o imóvel era bem de família, protegido pela Lei nº 8.009/90, pois Pedro continuava residindo nele. O Tribunal de Justiça desproveu o recurso, sustentando que, na ausência de partilha, o bem integrava o espólio e poderia ser utilizado para quitar dívidas do falecido. Os herdeiros então interpuseram recurso especial ao STJ, defendendo que a proteção do bem de família não depende de partilha ou de registro formal, mas da sua destinação como moradia da entidade familiar. Invocaram o princípio da saisine, que assegura a transmissão automática da posse e propriedade dos bens aos herdeiros. Ressaltaram que a impenhorabilidade do imóvel deveria prevalecer, visto que era o único bem da família e continuava sendo utilizado como residência.
O STJ deu provimento ao recurso afirmando que:
- A impenhorabilidade do bem de família se aplica ao espólio, desde que o imóvel seja utilizado como residência familiar.
- A ausência de partilha formal não afasta a proteção do bem de família.
(STJ. 4ª Turma. REsp 2.111.839-RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 06/05/2025)
Aprofundando:
Imagine a seguinte situação hipotética: Alberto era proprietário de um apartamento onde residia, sendo este seu único bem. Ele contraiu uma dívida pessoal de R$ 80.000,00 com Carlos, seu antigo parceiro comercial. Com o falecimento de Alberto, seus dois filhos, Pedro e Tiago, tornaram-se herdeiros. Carlos, o credor, ingressou com um pedido cautelar de arresto contra a sucessão de Alberto, solicitando o registro de arresto na matrícula do único imóvel do falecido para evitar que os herdeiros o alienassem antes do pagamento da dívida. O juízo deferiu o pedido.
Os herdeiros de Alberto (Pedro e Tiago) recorreram, alegando que Pedro estava morando no apartamento, o que configurava o imóvel como bem de família, nos termos do art. 1º da Lei nº 8.009/90. Segundo esse artigo:
"O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei".
Eles argumentaram que, embora não houvesse partilha formal e o imóvel ainda estivesse em nome do falecido, a proteção legal se aplicava por ser o único patrimônio da família e abrigar o filho do falecido, sendo utilizado como residência da entidade familiar.
O Tribunal de Justiça rejeitou a tese de impenhorabilidade, alegando que a ausência de partilha e a manutenção do imóvel em nome do falecido o integravam ao espólio, tornando-o suscetível à dívida. O TJ afirmou que a ocupação do imóvel por um dos herdeiros não o transformava automaticamente em bem de família impenhorável, pois o espólio deve responder pelas dívidas, conforme os arts. 1.792 e 1.997 do Código Civil. O art. 1.792 do CC estabelece que:
"O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados".
Já o art. 1.997 do CC prevê que:
"A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube".
Inconformados, os herdeiros interpuseram recurso especial, sustentando que a impenhorabilidade não depende de partilha ou registro formal, mas da destinação do bem como moradia familiar. Invocaram o princípio da saisine, previsto no art. 1.784 do Código Civil, que diz:
"Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários".
O STJ deu provimento ao recurso? SIM. A impenhorabilidade do bem de família é um instituto jurídico de grande relevância no ordenamento brasileiro, protegendo valores constitucionais essenciais. Essa proteção legal vai além da garantia patrimonial, concretizando princípios fundamentais da ordem constitucional.
De acordo com os arts. 1º, 3º e 5º da Lei nº 8.009/1990, a impenhorabilidade pode ser oposta em qualquer processo de execução (civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza), desde que seja o único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. O benefício da Lei nº 8.009/1990 é uma norma cogente, de ordem pública, e só é afastado nas hipóteses taxativamente descritas no art. 3º da mesma lei. As exceções à impenhorabilidade devem ser interpretadas restritivamente, em consonância com a proteção constitucional ao direito de moradia.
Quanto à responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas do falecido, o art. 1.997 do Código Civil dispõe que "a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube". Contudo, essa regra não afasta a proteção conferida pela Lei nº 8.009/1990 ao bem de família. Se o bem de família estaria protegido com o falecido em vida, ele continua protegido ao ser transmitido aos herdeiros, desde que mantidos os requisitos dos arts. 1º, 3º e 5º da lei.
Pelo princípio da saisine (art. 1.784 do Código Civil), "aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". Esse princípio estabelece uma ficção jurídica, em que os herdeiros substituem o de cujus na titularidade do patrimônio hereditário, assumindo-o na mesma condição jurídica. Desse modo, se os herdeiros se sub-rogam na posição jurídica do falecido, também recebem as proteções legais que amparavam o autor da herança, incluindo a impenhorabilidade do bem de família.
Portanto, o principal argumento do Tribunal de Justiça para negar a proteção do bem de família não subsiste. A alegação de que a ausência de partilha formal e a permanência do registro do imóvel em nome do de cujus impediria a invocação da proteção do bem de família pelos sucessores não se sustenta. A transmissão hereditária, por si só, não desconfigura ou afasta a natureza de bem de família, desde que mantidas as características de imóvel residencial próprio da entidade familiar.
A caracterização do bem de família decorre das circunstâncias fáticas de sua utilização como residência familiar, e não de aspectos formais registrais ou da realização de partilha. Assim, a mera ausência de averbação da partilha na matrícula imobiliária não desnatura a proteção conferida ao bem.
Em suma: A transmissão hereditária, por si, não tem a capacidade de desconfigurar ou afastar a natureza de bem de família, se mantidas as características de imóvel residencial próprio da entidade familiar. (STJ. 4ª Turma. REsp 2.111.839-RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 06/05/2025)
Fonte: Dizer o Direito