Falsa Identidade: Entenda Quando o Crime se Consuma e suas Implicações

Ementa:

O delito de falsa identidade é crime formal, que se consuma quando o agente fornece, consciente e voluntariamente, dados inexatos sobre sua real identidade, e, portanto, independe da ocorrência de resultado naturalístico.

STJ. 3ª Seção. REsp 2.083.968-MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 14/5/2025 (Recurso Repetitivo - Tema 1255) (Informativo 850 do STJ).

O que configura o crime de falsa identidade?

O crime de falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código Penal brasileiro, consiste na conduta de atribuir a si mesmo ou a outra pessoa uma identidade que não corresponde à realidade. Para que essa ação seja considerada crime, ela deve ser praticada com uma finalidade específica: obter vantagem para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros.

O bem jurídico protegido por essa norma é a fé pública, que representa a confiança depositada pela sociedade na autenticidade das identificações pessoais. Essa confiança é fundamental para a segurança e a estabilidade das relações sociais e jurídicas. A conduta criminosa exige dolo direto, ou seja, o agente deve ter a vontade livre e consciente de fornecer dados de identidade inverídicos.

Além da intenção de enganar, é indispensável a presença do elemento subjetivo do injusto, que é o propósito de obter uma vantagem ou causar dano. A vantagem não se restringe ao ganho financeiro; pode incluir, por exemplo, a tentativa de evitar uma prisão em flagrante ou de se esquivar de responsabilidades legais. Do mesmo modo, o dano pode ser de qualquer natureza, não se limitando ao prejuízo patrimonial.


O Momento da Consumação: A Natureza Formal do Delito

Uma dúvida comum no estudo do crime de falsa identidade refere-se ao momento exato de sua consumação. De acordo com o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), trata-se de um crime formal. Isso significa que ele se completa com a simples ação de fornecer os dados falsos, independentemente de o agente conseguir, de fato, a vantagem pretendida ou causar o dano almejado.

A natureza formal do delito é o que o distingue de crimes materiais, que exigem um resultado naturalístico para sua consumação (como o homicídio, que depende da morte da vítima). No caso da falsa identidade, a obtenção do benefício é considerada mero exaurimento do crime, uma etapa posterior que não é necessária para a sua configuração.

Na prática, se um indivíduo é abordado por uma autoridade policial e se identifica com um nome falso para ocultar antecedentes criminais, o crime se consuma nesse exato momento. É irrelevante que, minutos depois, os policiais descubram a farsa por meio de uma consulta ao sistema. A conduta de atribuir a si a falsa identidade já foi praticada e o delito, aperfeiçoado.

Dessa forma, a lei não exige que a mentira produza efeitos concretos para que o crime exista. A simples declaração inverídica, feita com a finalidade específica prevista em lei, é suficiente para a consumação do tipo penal, tornando a obtenção da vantagem ou a causação do dano irrelevante para sua tipificação.


Falsa Identidade vs. Direito à Autodefesa: O que dizem os Tribunais?

Um dos argumentos mais recorrentes em casos de falsa identidade é a alegação de que a conduta seria um exercício do direito à autodefesa, garantido pela Constituição. Esse direito, conhecido como o princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), assegura que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo, incluindo o direito de permanecer em silêncio.

Contudo, os tribunais superiores brasileiros, incluindo o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabeleceram uma distinção clara entre o silêncio e a prática de um novo crime. A jurisprudência consolidada entende que o direito à autodefesa não confere ao indivíduo a permissão para cometer infrações penais.

Atribuir-se falsa identidade é uma conduta positiva, uma ação deliberada para enganar a autoridade, e não uma mera omissão ou recusa a colaborar. Enquanto o direito de não se incriminar protege o acusado de uma postura colaborativa compulsória, ele não autoriza a prática de atos ilícitos como meio de defesa.

Essa posição é tão pacífica que foi objeto da Súmula 522 do STJ, que afirma:

522 do STJ: "A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa".

Além disso, no Tema 646 STJ, foi fixada a seguinte tese:

É típica a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa (art. 307 do CP). STJ. 3ª Seção. REsp 1.362.524/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 23/10/2013.

Portanto, a alegação de que se está apenas se defendendo para ocultar maus antecedentes, por exemplo, não é suficiente para afastar a criminalização do ato.


Arrependimento ou Retratação Posterior: É Possível Excluir o Crime?

Outra questão relevante surge quando o agente, após fornecer uma identidade falsa, se retrata e revela seus dados verdadeiros. Seria essa confissão posterior capaz de afastar a tipicidade da conduta ou de configurar um arrependimento eficaz? A resposta, de acordo com a jurisprudência, é não.

Como o crime de falsa identidade é formal e se consuma no exato momento em que os dados inexatos são fornecidos, a conduta criminosa já foi integralmente realizada. A retratação ou a confissão que ocorre depois disso não tem o poder de desfazer o que já aconteceu. O delito já ofendeu o bem jurídico tutelado, que é a fé pública.

Essa situação é diferente do instituto do arrependimento eficaz, previsto no artigo 15 do Código Penal, que ocorre quando o agente, após iniciar a execução de um crime, impede voluntariamente que o resultado se produza. No caso da falsa identidade, como o crime é formal, a simples ação já consuma o delito, não havendo um resultado naturalístico a ser impedido.

Portanto, mesmo que o agente confesse a verdade antes do registro de um boletim de ocorrência ou de qualquer outra formalidade administrativa, o crime já estará consumado. Essa retratação poderá, no máximo, ser considerada como uma circunstância atenuante na aplicação da pena, como a confissão espontânea (art. 65, III, 'd', do Código Penal), mas não exclui a existência do crime em si.

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há 4 semanas
Matéria: Direito Penal Especial
Artigo
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