Requisição de RIF ao COAF pelo MP: STJ Define a Necessidade de Autorização Judicial

  1. A solicitação direta de relatórios de inteligência financeira pelo Ministério Público ao COAF sem autorização judicial é inviável.
  2. O tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta de dados financeiros por órgãos de persecução penal sem autorização judicial.

STJ. 3ª Seção. AgRg no RHC 174.173-RJ, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 14/5/2025 (Informativo 850 do STJ).

Aprofundando:

1. Introdução: O Debate sobre o Acesso Direto a Dados Financeiros

A capacidade dos órgãos de persecução penal, como o Ministério Público (MP) e a Polícia, de acessarem diretamente dados financeiros sigilosos é um dos temas mais sensíveis e controversos no Direito brasileiro. A questão coloca em rota de colisão dois interesses de grande relevância: de um lado, a necessidade de eficácia na investigação de crimes complexos, como lavagem de dinheiro e corrupção; de outro, a proteção ao direito fundamental à privacidade e à inviolabilidade do sigilo de dados, garantido pelo art. 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal.

Nesse cenário, a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) — antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) — desempenha um papel crucial. O órgão é responsável por receber e analisar informações sobre operações financeiras suspeitas, consolidando-as nos chamados Relatórios de Inteligência Financeira (RIF). A controvérsia jurídica central reside em definir se o Ministério Público pode, por iniciativa própria, requisitar esses relatórios para instruir uma investigação ou se tal acesso demanda, obrigatoriamente, uma autorização judicial prévia.

A discussão ganhou novos contornos após decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e, mais recentemente, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se debruçou sobre os limites dessa requisição. O posicionamento do STJ clarifica o alcance de um importante precedente e estabelece balizas fundamentais para a atuação dos órgãos investigativos, buscando equilibrar o poder de investigação estatal e as garantias individuais.


2. O Tema 990 do STF e a Origem da Controvérsia

A origem da discussão moderna sobre o acesso a dados financeiros remonta ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.055.941, que fixou o Tema 990 da Repercussão Geral no STF. Naquela ocasião, o Plenário decidiu que é constitucional o compartilhamento, sem prévia autorização judicial, dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) pela UIF/COAF e da íntegra de procedimentos fiscalizatórios pela Receita Federal com os órgãos de persecução penal para fins criminais.

A tese firmada pelo STF validou o fluxo de informações que parte dos órgãos de fiscalização e inteligência em direção ao Ministério Público e à Polícia. Ou seja, o STF autorizou o compartilhamento espontâneo, que ocorre quando a própria UIF/COAF ou a Receita Federal, ao identificar indícios de crimes, comunica formalmente as autoridades investigativas. A lógica foi a de não criar barreiras que pudessem inviabilizar o combate a crimes sofisticados, garantindo que as informações chegassem a quem tem a atribuição de investigar.

No entanto, a decisão do Tema 990 tratou especificamente desse fluxo unidirecional de informações. A controvérsia que chegou ao STJ nasceu de uma dúvida crucial que não foi expressamente solucionada pelo STF: o caminho inverso também seria válido? Em outras palavras, o Ministério Público ou a autoridade policial poderiam requisitar diretamente os RIFs ao COAF, sem autorização judicial, quando uma investigação já estivesse em curso? Essa lacuna interpretativa deu margem a entendimentos divergentes, levando os tribunais a definirem se a lógica do Tema 990 se estenderia também à solicitação ativa de dados pelos órgãos de persecução penal.


3. A Divergência de Entendimento no Supremo Tribunal Federal (STF)

A ausência de uma resposta explícita no Tema 990 sobre a requisição direta de dados pelo Ministério Público gerou um cenário de instabilidade, com as duas Turmas do STF adotando posicionamentos antagônicos. Essa divergência interna foi fundamental para a complexidade do debate e a necessidade de uma pacificação jurisprudencial.

De um lado, a Primeira Turma do STF adotou uma interpretação mais ampla, defendendo que o compartilhamento de dados é uma "via de mão dupla". Para os ministros desse colegiado, como Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes, o Tema 990 autorizaria tanto o envio espontâneo de informações pelo COAF quanto a solicitação direta pelo Ministério Público, sem necessidade de autorização judicial. Esse entendimento se baseia na ideia de que, se a informação pode ser compartilhada, não faria sentido impedir que o órgão investigador a solicitasse, pois o conteúdo dos dados seria o mesmo.

Em contrapartida, a Segunda Turma do STF firmou uma posição mais restritiva. Para ministros como Gilmar Mendes e Edson Fachin, o Tema 990 deve ser interpretado literalmente, aplicando-se apenas ao compartilhamento espontâneo. A requisição direta pelo MP, segundo essa corrente, seria uma medida invasiva que violaria a reserva de jurisdição — a exigência de ordem judicial para afastar o sigilo de dados. Essa visão busca proteger de forma mais rigorosa o direito à privacidade, diferenciando o ato de receber uma informação suspeita do ato de buscar ativamente dados sigilosos em uma investigação já em andamento.

Essa cisão no STF criou um quadro de insegurança jurídica, onde a legalidade de uma prova poderia depender da Turma que viesse a julgar o caso. Foi nesse contexto que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi chamado a se manifestar.


4. A Posição do STJ: A Requisição Direta pelo MP é Inviável

Diante da divergência no STF, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do AgRg no RHC 174.173-RJ, unificou seu entendimento e se alinhou à corrente mais restritiva, concluindo que o Ministério Público não pode requisitar diretamente Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) ao COAF sem autorização judicial.

O principal fundamento da decisão foi a interpretação estrita do Tema 990 do STF. Para o STJ, o precedente do Supremo autorizou apenas o compartilhamento espontâneo de informações (fluxo unidirecional), não o caminho inverso. A corte entendeu que a requisição ativa de dados sigilosos por órgãos de persecução penal configura uma medida distinta e mais invasiva, que não foi abrangida pela tese de repercussão geral.

Adicionalmente, o STJ destacou que a própria Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998), em seu artigo 15, prevê que o COAF "comunicará às autoridades competentes" quando identificar indícios de crimes. O texto legal, portanto, descreve uma ação que parte do COAF, e não uma obrigação de atender a requisições externas.

Com essa decisão, o STJ reafirmou a regra da reserva de jurisdição para o afastamento do sigilo de dados financeiros. Ainda que os RIFs sejam considerados "peças de informação", eles contêm dados sensíveis. Permitir a requisição direta pelo MP seria criar uma exceção à proteção constitucional da privacidade que não está prevista em lei nem foi autorizada expressamente pelo STF, tornando a prova obtida por esse meio ilícita.


5. Diferenciação Crucial: Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) versus Dados Cadastrais

Para compreender o alcance exato da decisão do STJ, é fundamental distinguir os Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) dos chamados dados cadastrais. A restrição imposta à requisição direta pelo Ministério Público aplica-se especificamente à primeira categoria, não se estendendo à segunda, cujo tratamento jurídico é distinto.

Os RIFs contêm informações sensíveis sobre a vida financeira do indivíduo, detalhando movimentações, valores e transações que indicam um padrão de atividade econômica. Por sua natureza, esses dados são protegidos por um sigilo reforçado, e seu acesso é considerado uma medida excepcional.

Por outro lado, os dados cadastrais são informações de qualificação pessoal, como nome completo, filiação, data de nascimento, número de CPF e RG, endereço e número de telefone. Esses dados, embora protegidos pela política de privacidade, não revelam a intimidade financeira de uma pessoa.

O próprio STJ, em outras ocasiões (REsp 1.955.981-GO), já consolidou o entendimento de que dados cadastrais em posse de instituições financeiras não estão abrangidos pelo sigilo bancário, previsto na Lei Complementar nº 105/2001. O Supremo Tribunal Federal também entende que a proteção do art. 5º, XII, da Constituição Federal se refere à "comunicação de dados", e não aos "dados em si mesmos" quando se trata de simples qualificação.

Portanto, a decisão que veda a requisição direta de RIFs não impede que o Ministério Público ou a Polícia requisitem, sem autorização judicial, dados cadastrais a bancos ou outras entidades, desde que o pedido seja formal, específico e devidamente fundamentado em um procedimento investigatório em curso. Essa diferenciação é essencial para o equilíbrio entre a eficácia da persecução penal e a proteção das garantias fundamentais, permitindo que os órgãos de investigação identifiquem suspeitos sem, contudo, violar o núcleo do direito à privacidade financeira.

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há 4 semanas
Matéria: Direito Processual Penal
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