1. O Caso Concreto: Prisão, Fuga e a Reação do Público
A situação fática que serve de base para esta análise envolve uma ação policial em São Paulo, onde equipes da Polícia Militar realizaram a interceptação e prisão de um indivíduo que estava em fuga. Este tipo de intervenção, que demanda agilidade e controle da situação, frequentemente atrai a atenção de populares e, no contexto atual, a gravação por dispositivos móveis.
No momento da prisão, enquanto os policiais efetuavam os procedimentos necessários, formou-se um cerco de pessoas ao redor da operação. Durante a abordagem, notou-se a interferência de um homem que estava filmando a ação. A filmagem, que inicialmente poderia ser um mero registro, descambou para a interferência direta e ofensa à autoridade, com o indivíduo proferindo xingamentos graves contra os militares, como “covarde” e outras ofensas. Mesmo advertido por uma mulher para se afastar, o homem insistiu na gravação e na permanência no local, alegando apenas estar filmando.
Este cenário levanta duas questões jurídicas centrais: a responsabilidade penal do infrator detido por sua conduta no trânsito e, mais crucial, os limites legais da ação do cidadão que filma e interfere na abordagem policial.
2. Análise Jurídica da Conduta do Infrator: Os Crimes de Trânsito no Código Brasileiro
O indivíduo interceptado pelos policiais é, primariamente, responsável por sua conduta de fuga e direção veicular, que possivelmente colocou em risco a segurança viária e a vida de terceiros. O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) tipifica condutas que, além de infrações administrativas, constituem crimes de trânsito, aplicáveis à situação descrita.
Duas tipificações penais do CTB são potencialmente aplicáveis ao condutor em fuga:
- Art. 309 do CTB: O texto legal prevê o crime de Dirigir sem habilitação gerando perigo de dano. Para a sua configuração, não basta apenas a ausência da Carteira Nacional de Habilitação - CNH, é necessário que a conduta de dirigir sem o documento gere um perigo concreto de dano à segurança viária.
- Art. 311 do CTB: Este artigo tipifica o crime de Conduzir em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de locais que exigem cautela redobrada, como escolas, hospitais, estações de embarque/desembarque de passageiros, ou onde haja grande movimentação de pessoas.
A depender do caso concreto e das circunstâncias da fuga (se houve manobras arriscadas, alta velocidade em áreas sensíveis, ou danos causados), o condutor pode responder por um ou ambos os crimes de trânsito. A análise detalhada da ação policial e dos elementos de prova definirá a responsabilização penal do infrator detido.
3. O Direito de Filmagem: Fiscalização Popular da Atividade Policial
A filmagem de abordagens e operações policiais, por si só, não constitui ato ilícito ou crime. O texto constitucional garante a liberdade de expressão e a sociedade possui o direito de fiscalizar a atuação do Estado em todas as suas esferas, inclusive a de segurança pública. Esse exercício é conhecido como controle externo popular da atividade policial.
A permissão para gravar atua como um mecanismo de transparência e legitimidade, garantindo que a força policial seja utilizada dentro dos limites legais e com respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. A filmagem serve como um importante meio de prova, tanto para comprovar a legalidade e o procedimento correto da polícia quanto, em casos de excesso ou abuso de autoridade, para documentar a conduta irregular.
Essa prerrogativa é reconhecida pela jurisprudência. Por exemplo, a 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJ-DF, no julgamento do Acórdão n. 0717953-91.2015.8.07.0016, julgado em 28/02/2018, já sinalizou a importância do controle social da atividade policial. Embora o julgado trate de um contexto de abordagem específica, a base é a mesma: a atuação estatal deve ser transparente e está sujeita ao escrutínio público, desde que não haja interferência no serviço.
O direito de filmar, contudo, não é absoluto e encontra seus limites onde começa a interferência ou o desrespeito à autoridade, como será abordado no próximo item.
4. Quando a Filmagem se Torna Ilícita: Os Crimes Envolvidos na Interferência
O problema jurídico e a eventual criminalização da conduta não residem no ato de filmar, mas sim na atitude do cidadão que, sob o pretexto da gravação, interfere, atrapalha ou desrespeita o trabalho dos agentes de segurança. A partir do momento em que a filmagem ultrapassa o mero registro e passa a ser utilizada como ferramenta de provocação, ofensa ou obstáculo à ação policial, ela pode configurar diversos crimes.
No caso descrito, a conduta do homem de proferir ofensas como “covarde” e gritar impropérios, ignorando o pedido de afastamento e insistindo na interferência verbal, pode enquadrar-se nas seguintes tipificações penais:
- Desacato (Art. 331 do Código Penal): Consiste em desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. O ato de proferir ofensas graves contra o policial em serviço, como no caso em tela, é o enquadramento clássico para este crime, que visa proteger o prestígio e a dignidade da função pública.
- Desobediência (Art. 330 do Código Penal): O crime se configura quando há o descumprimento de ordem legal de funcionário público. Se os policiais ordenaram que o indivíduo se afastasse da área de segurança da prisão para evitar tumulto e o homem ignorou a ordem, pode haver a configuração do crime.
- Perturbação do trabalho (Art. 42 da Lei de Contravenções Penais - LCP): A conduta de molestar ou perturbar o trabalho ou o sossego alheios pode ser aplicada ao cidadão que cria tumulto ou dificuldade para que os policiais executem suas funções de maneira eficiente e segura.
- Favorecimento Pessoal (Art. 348 do Código Penal): Embora mais complexo de ser configurado, pode ocorrer quando o cidadão auxilia criminoso a subtrair-se à ação de autoridade pública, sem ter participado anteriormente do crime por ele cometido. A criação de um tumulto deliberado, com o objetivo de facilitar a fuga ou impedir a prisão do infrator, poderia ser enquadrada nesta tipificação, a depender da intenção.
É fundamental reiterar que a fiscalização deve ocorrer de forma passiva, respeitosa e à distância segura, permitindo que a ação policial se desenvolva sem riscos ou interrupções.
5. A Importância da Conduta Respeitosa e a Possível Qualificação como Testemunha
A atitude do cidadão durante a filmagem deve ser sempre pautada pelo respeito e pela não interferência direta na atividade policial. A insistência em ofender a autoridade ou em se posicionar de forma a obstruir a ação é a linha divisória que transforma um ato legítimo de fiscalização em uma conduta criminosa. O direito de fiscalizar cessa onde começa a ameaça à segurança da operação ou a desmoralização da função pública.
Por outro lado, em vez de ser visto como um obstáculo, o cidadão que filma de forma respeitosa e isenta pode ter sua gravação e presença valorizadas pela própria polícia. O policial tem a prerrogativa de qualificar o autor da gravação como testemunha da ação, registrando a intervenção no Boletim de Ocorrência. A gravação, neste caso, torna-se uma prova material idônea que pode ser útil à persecução penal, auxiliando o Ministério Público e o Judiciário na correta elucidação dos fatos e na comprovação da materialidade e autoria delitiva.
Conclusão
Portanto, a regra é clara: Gravar não é crime, pois é um exercício do direito fundamental à fiscalização e transparência. Contudo, atrapalhar, ofender ou incitar o desrespeito à autoridade constitui crime. O cidadão tem o direito de exercer o controle externo popular, desde que o faça com urbanidade, respeito e sem, em momento algum, interferir na atuação legítima da Polícia Militar. O limite entre o direito e o ilícito está na forma como o indivíduo se porta durante a abordagem.
Referência: @canga.juridico